Até aqui nos ajudou…

Lucas Ed .
10 min readJan 14, 2024

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Me ocorreu uma percepção e tive de ir conferir no Portal do Servidor.

Sim. Inacreditavelmente, ano que vem completo 20 anos de serviço como policial civil em Minas Gerais.

Vinte anos.

Sei que é um chavão, mas é uma vida. Eu realmente conheço gente que nasceu e gente que morreu nesse período. Conheci até uns poucos que nasceram E morreram nesse intervalo.

Vinte anos.

Vinte anos de um trabalho que deveria ser transitório — “só enquanto eu faço a faculdade” — e que quase acabou no primeiro mês, quando fui mandado para Ouro Preto e, sem conseguir uma transferência para Belo Horizonte, estava entre abandonar o trabalho ou a faculdade (a vítima já tinha sido escolhida: seria o trabalho).

Digaí: “onde está Wally?” (sim, eu estou nessa foto)

Dou uma boa olhada na fotografia da minha turma de Academia de Polícia, a DT 21 de 2004: não sei que fim levou a maioria dos meus colegas (afinal, Minas Gerais é um estado de proporções nacionais), mas daqueles que sei, teve gente que foi desligada ainda antes de ser nomeada. Teve quem largou a profissão com pouco tempo de serviço e teve quem largou depois de uns bons anos. Teve quem foi preso, quem foi expulso e retornou, teve quem morreu — confesso que esta crônica vai envolvida um pouco no sentimento dessa morte: há menos de um mês, o Carneiro (entre os agachados, o segundo da esquerda para a direita), morreu aos 48 anos vítima de um ataque cardíaco. Entre os que tive notícias pós-formatura, talvez tenha sido um dos que mais tive, já que trabalhamos juntos por alguns anos na Homicídios.

Em vinte anos muita coisa acontece.

E, se a vida tem sempre razão, o que era pra ser temporário, o que era aversivo, já passou da maioridade.

Aversivo. Sei que parece, mas não é uma palavra forte demais não. Pergunte aos meus amigos de antes da polícia, pergunte aos meus alunos na Academia de Polícia, pergunte às pessoas que me conheceram sem saber da minha profissão e depois descobriram: eu nunca quis ser policial e, olhando para mim ainda hoje, não consigo ver em mim nada que corresponda à imagem que imagino compartilharmos sobre o que é um policial, mesmo um agente de investigações, que é o meu caso.

Veja bem: já falei sobre isso antes, mas eu queria ser padre. A coisa foi transmutando, de padre eu quis ser psiquiatra, de psiquiatra passei a psicólogo. Ok, mesmo que o Ricardo Balestreri tenha ligado psicologia e segurança pública no seu (hoje clássico) texto “Treze reflexões sobre polícia e direitos humanos”, ou que você considere que o fazer policial é uma mistura de educar e governar — e portanto estaria no trio dos ofícios impossíveis de Freud — certamente há de concordar comigo que é difícil completar uma equação que tem sacerdócio e saúde mental como elementos e chegar a polícia como resultado.

Sim, esse cara fui eu (acho que já fiz essa piada antes)

Porque isso é o que parece ser: a polícia foi, na minha vida, um acidente de percurso.

Num mundo em que cargos públicos ainda não eram um objetivo de vida tão popular quanto são hoje, um jovem negro de classe baixa, estudando para o vestibular, de repente se viu aprovado num concurso para uma profissão que não queria, mas cujo salário era muito superior ao que sua mãe recebia e com o qual criava (praticamente sozinha) três filhos.

No dia em que aceitei a ideia do pai da minha então namorada (ele mesmo um policial civil) e fui fazer aquela prova de concurso, eu de certa forma selei meu destino — acho indiscutível que minha vida seguia um rumo que foi alterado completamente quando saí de casa para fazer aquela prova de concurso, e digo isso sem nenhum peso valorativo: não estou dizendo que melhorou ou que piorou, mas que mudou radicalmente, mudou.

Mas não pense você que, por causa dessa relação turbulenta, durante os últimos (quase) vinte anos eu fui um mau policial. Não fui, e a modéstia que vá às favas. Pelo contrário: como muita gente da minha geração, como a maioria das pessoas que cresceram em realidades como a minha, me agarrei a esse trabalho como se minha vida dependesse dele — e ela dependia mesmo. Minha ficha funcional tem menções elogiosas de chefes imediatos a ministros de Estado e nesse tempo todo, se fui repreendido foi muito mais por ser desajuizadamente racionalista e preocupado em ser técnico e justo, quando era mais prudente ficar calado e seguir a correnteza.

(Teve também aquela fez que tomei uma punição administrativa informal por, literalmente, mijar fora de hora. Mas isso é história para outro dia)

Me dediquei à polícia, participei de grandes trabalhos, tenho sido honrado e comprometido. Se tenho alguma vergonha, se me arrependo de alguma coisa, foi das vezes em que me calei diante de injustiças institucionais, sobretudo por inexperiência e desconhecimento. De resto, durmo absolutamente tranquilo, com a consciência tranquila de um trabalhador que realiza bem o seu trabalho.

É bem verdade que, graças à segurança trazida pela polícia, conquistei muitas coisas. Concluí uma graduação numa das maiores universidades públicas do país (até hoje proibitiva para muita gente que vem de onde vim, por ser em horário integral), obtive um título de mestre e oxalá terei um de doutor sem ter que me preocupar com empregabilidade, renda ou se a subsistência viria com aqueles títulos — um “privilégio” que muitos dos meus colegas, aqueles mais parecidos comigo, não puderam contar.

Meu trabalho na polícia também me levou a muitos lugares. Quando penso, por exemplo, que no momento mais tenebroso da nossa política recente eu pude fazer parte da coordenação que reformulou o documento diretor mais importante da política de segurança pública do país (o Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social — PNSP 2021–2030), de modo a produzir algo técnico e livre das alucinações ideológicas vigentes tanto quanto possível; ou que fiz parte do esforço — o maior até aqui — para a estruturação de uma política nacional de busca de pessoas desaparecidas, olha… eu fico bem satisfeito. Tão satisfeito quanto quando penso que já fui a todas as cinco regiões do Brasil e que inclusive já nos representei fora daqui (ou que escrevi o texto de uma proposição do Brasil no Mercosul. Mas aí foi ghost writer e ninguém liga).

Foto da “1ª Reunião de Pares entre autoridades latino-americanas encarregadas dos mecanismos nacionais dedicados a esclarecer a sorte e o paradeiro das pessoas desaparecidas e responder às necessidades das famílias de pessoas desaparecidas“, na Cidade do Panamá/Panamá (dez.2021) — o nome é isso tudo mesmo.

Mas também passei muita raiva nesses anos. Vi muita gente totalmente incompetente prosperar. Vi colegas morrerem, se matarem, perderem completamente a sanidade, se acabarem. Perdi casos, vi crianças e adolescentes serem submetidos às maiores barbaridades e completa falta de humanidade daqueles que deveriam zelar por elas. Vi gente que admirava fazer coisas execráveis. Vi pessoas com perfil muito parecido comigo serem trituradas por uma instituição cruel e adoecedora. Oras, se eu mesmo já considerei a “solução definitiva” para o meu “problema”!

Recebi hostilidade gratuita das pessoas (do ponto de vista exclusivamente pessoal) e, quando fui bem recebido, preferir que me tratassem com hostilidade: isso porque, no fim das contas, me tornei uma espécie de estrangeiro permanente. Entre meus pares na academia, na cultura, no alinhamento político, eu sou um Outro, de quem eles esperam (mas não confessam), uma traição ao qualquer momento. Uma sensação quase física de uma síndrome do Cabo Anselmo. Do outro lado, entre meus colegas policiais, coisa semelhante: ou sou escanteado por ser “dos direitos humanos”, convidado a “ficar na minha” ou mesmo ridicularizado por supostamente não ser “polícia de verdade”. Não, as incontáveis madrugadas em cenas de crime lavadas em sangue ou as prisões conseguidas depois de muito esforço não contam para fazer de mim um “polícia de verdade”: não sem tapas na cara, sem portas chutadas ou sem sacolas espalhadas por aí (“sacola” é uma gíria da PCMG, quer dizer “amante”).

Tudo bem. Porque se penso com cuidado nesse cenário de suspeita permanente em que vivo, sou obrigado a admitir que talvez ser policial só tenha acrescentado uma camada ao que eu já passaria por ser um homem negro que ascendeu socialmente. Pior: um homem negro que ascendeu socialmente sendo policial. É muita coisa ao mesmo tempo.

Vinte anos.

Durante quantos anos desses vinte me sabotei profissionalmente? Quantos editais de promoção eu fiz pouco caso porque disse pra mim mesmo “não ia ficar muito tempo nessa merda”? E, pensando assim, apesar de pensar assim, vinte anos se passaram.

Para me aposentar, faltam treze. É isso aí: eu já passei da metade da corrida. Já subi tudo o que tinha pra subir nessa serra, e agora já estou descendo.

O que serão dos próximos treze anos?

Acho que é uma tolice, talvez até uma infantilidade, continuar jogando contra. Sabe, já não sou o garoto de vinte e poucos anos de idade que entrou na corporação. Ganhei maturidade, experiência e, com elas, um certo cinismo. Por exemplo, o cinismo que me diz que sim, é um trabalho ruim. E que sim, a segurança pública no Brasil — como muitos serviços públicos, a maioria deles, e talvez não só no Brasil — é pensada para não funcionar. É uma máquina de moer pobres de um lado e do outro: como diz aquela música maravilhosa do Sérgio Sampaio: “o bandido e o mocinho são os dois do mesmo ninho”.

Meu cinismo é esse: as coisas são assim. Mas ele não pode se confundir com fatalismo, é uma fronteira sutil e perigosa: não é porque as coisas são assim que elas devem continuar assim, ou que não há nada que eu possa e deva fazer.

Já contei essa história dezenas de dúzias de vezes: já no final da graduação, trabalhando num projeto de extensão de divulgação científica da psicologia pelo rádio, era uma dificuldade danada conseguir que os professores nos concedessem entrevistas. Não sei se por um receio de serem incompreendidos ou deliberadamente deturpados, ou talvez por despeito por ser um programa da rádio universitária, o lance é que não raras vezes recebemos negativas de pessoas para falar sobre os assuntos que eles mais entendiam. Eis que uma pauta tinha figura certa para ser entrevistada: a Profa. Dra. Cassandra Pereira França, uma verdadeira autoridade no campo da psicanálise, especificamente no tratamento de crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual. Eu tinha estagiado com ela em clínica infantil um tempo antes, e apesar de ser uma supervisora muito disponível e gentil, quando fui pedir que nos concedesse uma entrevista, esperei uma negativa. Que não veio. Pelo contrário: ela foi acessível e gentil como tinha sido todas as outras vezes em que conversamos. Aproveitei aquela pouca proximidade e perguntei: “Mas professora, todo mundo recusa e a senhora aceitou de cara. Por quê?” ao que ela me respondeu contando uma história de quando trabalhava num (ou para um) hospital e uma pessoa muito conhecedora de determinado assunto recusou-se a fazer algo relacionado àquilo e, diante da recusa, outra pessoa, sem as mesmas capacidades, aceitou.

Essa situação se resumiu na minha cabeça com uma máxima, que posso jurar ter sido dita por ela: “toda vez que o competente recusa, um incompetente aceita.” Ou, de uma maneira mais pop:

Esses vinte anos foram, sem sombra de dúvidas, agridoces. Os próximos treze devem seguir o mesmo tom. Mas o que decidi é que, no que depender de mim, eles serão menos sofridos, porque vou parar de nadar contra. Depois de vinte anos, não dá pra dizer que eu “estou” policial: eu sou policial civil. Sou investigador de polícia.

É preciso tirar o suco desse limão, gostando ou não de limonada. Os próximos treze anos vão acontecer, a não ser que algo muito radical se imponha. Então, se eles vão acontecer, já passou da hora de admiti-los e dobrar a aposta: daqui pra diante, quero ser (ainda) mais eu dentro da polícia. Quero que minhas convicções sejam ainda mais claras, minhas ações e posicionamentos mais evidentes. Quero ainda voltar pra rua, quero ser mais professor na Academia de Polícia. Ser ainda mais franco e transparente com meus alunos. Quero que eles tenham clareza de que, no estado de coisas em que vivemos, uma instância repressora do Estado ainda é necessária e, sendo necessária, deve ser perseguida com dedicação, ética e observância estrita (cada vez mais) da legalidade, para que não se converta em violência estatal.

Do que me cabe, faço um lema: HUMANIDADE & RESISTÊNCIA.

Veja, não é uma mudança de convicção, é uma mudança de posicionamento: até aqui, eu achei que bastava ser diferente. Ser fiel aos meus princípios e só. Isso não basta: é preciso gritá-los, é preciso educar, é preciso vestir a camisa e correr os riscos disso. Porque 2018–2022 não acabou, infelizmente, mas nos mostrou o monstro que segue por aí à nossa espreita, a cadela permanentemente no cio.

Então, é preciso resistir. Não mais resistir contra a instituição por meio da qual construí minha vida, mas justamente, resistir à essa noção de instituição, perversa, violenta, alienada e alienadora, que durante vinte anos me fez repudiar minha ligação (vital!) com ela.

Mas só resistir não basta.

Resistir por resistir nos embrutece. Sozinha, a necessidade de resistir se converte em necessidade de sobreviver, de se virar: e aí é como diz o samba genial de Paulinho da Viola: “quando o jeito é se virar, cada um trata de si, irmão desconhece irmão”. Então é preciso resistir com (e em função da) humanidade. É preciso ser capaz de diferenciar os perversos dos alienados. Os violentos dos ignorantes. Os mal-intencionados dos mal instruídos. E tratar a cada um conforme as suas responsabilidades.

Obviamente eu não sou capaz, mas é preciso fundar uma nova polícia. Quer dizer, é preciso conscientizar as pessoas, policiais ou não, sobre cidadania e, a partir daí, acompanhar a necessidade e o clamor por uma nova segurança pública. Eu não tô inventando nada disso, nem sou um iluminado, o messias carregando a boa nova: gente muito melhor do que eu, e muito antes de mim, se engajou nessa luta. O que estou declarando aqui é meu objetivo de deixar ainda mais claro meu comprometimento com esse sonho, e trabalhar por ele de maneira ainda mais aguerrida.

Os próximos treze anos (quatorze, porque os vinte só virão no ano que vem) serão difíceis. Duros.

Mas se eu sobrevivi aos últimos vinte, acho que dá pra encarar a pedreira.

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Lucas Ed .

O Poderoso Porco do cavalo imaculado. Investigador de polícia, mestre e doutorando em Psicologia Social/UFMG, professor. https://linktr.ee/lucas.edp